Fatine Oliveira
Uma das principais razões de terem criado o 8 de março foi para dar visibilidade à luta pela igualdade de direitos para as mulheres. É claro, separar uma data no ano não quer dizer que nos outros dias devemos esquecer das dificuldades que circundam nosso cotidiano, certo? Bom, isso depende de qual “nós” estamos falando.
O meu dia a dia envolve a necessidade de receber o cuidado de outras pessoas para realizar algumas tarefas básicas como tomar um banho, trocar de roupa, sair de casa. De ter um espaço amplo dentro de casa para me mover tranquilamente e de uma organização dos móveis para que consiga fazer minhas tarefas com autonomia. Por isso, faço parte de um “nós” que poucas pessoas realmente se interessam em conhecer: o das mulheres com deficiência.
Segundo os dados da ONU, 15% da sociedade mundial é composta por pessoas com deficiência[1]. Já no Brasil, de acordo com o Censo 2010 temos 23,9% da população tem algum tipo de deficiência, sendo composto por 26,5% de mulheres que ainda permanecem sem acesso a educação, ao trabalho, ao lazer, às relações afetivas de amizade ou sexuais.
Quando pensamos no corpo feminino consideramos que seja capaz de desempenhar as performances cisheteronormativas em seus papéis sociais de esposa, mãe e amante, sempre mantendo a aparência jovial e uma postura resignadora. Porém, como bem relata a autora Judith Butler (2018) “se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é”. Há outros contextos que interferem nas nuances do cotidiano das mulheres, os quais conduzem ou impedem seu acesso a participação política, econômica e cultural.
Podemos dizer que os movimentos do feminismo negro foram essenciais para refletir essa diversidade feminina, abrindo caminho para outras identidades serem compreendidas, organizadas e reconhecidas como lutas necessárias para mulher. Ao instrumentarem uma observação interseccional desses marcadores sociais da diferença, pudemos compreender as reivindicações de mulheres gordas, mães, trans, lésbicas e de baixa renda.
Entretanto, apesar desse alargamento de experiências ainda temos dificuldade de encontrar espaço nos movimentos sociais e em frentes parlamentares para falar a respeito do que é ser uma mulher com deficiência em uma sociedade tão excludente como a nossa.
Ainda é possível encontrar discursos que associam a deficiência à um corpo doente, o qual deve permanecer afastado da esfera pública permanecendo no âmbito privado submetido a cuidados e tratamentos “especiais”, alimentados pela crença em torno de um corpo ideal, apto, saudável e capaz de resistir as mudanças do tempo. Assim como as demais opressões estruturais – racismo, sexismo e machismo, por exemplo –, tais discursos permanecem em circulação na forma de preconceitos, macro e micro violências contra as pessoas com deficiência, o qual chamamos de capacitismo.
Se nós, mulheres com deficiência, também vivemos sob o jugo dessas opressões porque ainda permanecemos invisibilizadas? Por acaso nossa dor deve permanecer segmentada? Seria a deficiência uma má sorte ou situação do destino? Não estamos todos sujeitos ao envelhecimento, as surpresas da vida e aos arranjos que nos interconectam ao viver em coletivo?
Mulheres com deficiência também sofrem solidão afetiva por terem sua sexualidade e desejo preterido. Também passam por abusos sexuais ignorados pela família que não acredita que seu corpo (considerado infantil) possa ser assediado por parentes ou amigos próximos. Possuem dificuldades de conseguir trabalho no mercado formal, de concluir seus estudos em escolas regulares inclusivas, de realizarem os cuidados com sua saúde mental e sexual. Lidam com diferentes tipos de barreiras que as impedem de viverem bem e com respeito a sua autonomia de decisões e escolhas.
Não deveria ser possível falar de mulheres deixando-nos para trás, temos muito o que dizer, porém precisamos que estejam dispostos a realizar uma escuta atenta. Há muitas coisas para serem ditas, mas já esperamos tempo demais. Por isso, finalizo esse texto com uma única pergunta: quantas mulheres com deficiência fazem parte da sua luta?
Referência
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
[1] https://www.wethe15.org/pt
Fatine Oliveira é mestra em Comunicação Social no Programa de Pós-Graduação da UFMG, faz parte do grupo de pesquisa Afetos: Grupo de Pesquisa em Comunicação, Acessibilidade e Vulnerabilidades, e autora do blog Disbuga.